Sofrimento mental, emoções e a vida: a necessidade de uma abordagem integral

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Sofrimento mental é a expressão que foi escolhida pelo Sistema Conselhos de Psicologia no Brasil como alternativa ao transtorno mental. Por um lado, ajuda a não estigmatizar a pessoa com algum problema de origem psicológica, por outro, não quer dizer nada e não serve para diferenciar os diversos estados ou “problemas”.

O que é sofrimento mental? Imagine que você chega em um Centro de Atenção Psicossocial e pergunta para um psicólogo – Por que aquela pessoa está aqui? Ai ele te responde – Sofrimento mental! E aquele outro ali? A mesma resposta – Sofrimento mental!

Aí você pergunta – mas o que vocês estão fazendo? Atenção [porque não pode falar tratamento….] para sofrimento mental! E com aquele outro? Atenção para sofrimento mental também….. Aí você fica sem saber que atenção é essa que serve para tudo…..

Como seria, então, o diagnóstico do sofrimento mental?

Seria o sofrimento mental um resultado dos transtornos para os quais essa expressão alternativa tenta substituir?

Será o sofrimento mental apenas uma expressão do marketing ideológico que tende a incluir todos em uma mesma categoria na tentativa de acabar com a diferença?

Expressão semelhante já foi utilizada em relação às pessoas com deficiência (PCD). No início dos anos 2000, a expressão que foi “imposta” para uso pelos psicólogos era “portador de necessidade especial“. Nessa época, realizando doutorado na Universidade de Brasília, era comum ser socialmente “punido” por não seguir o politicamente correto. Tal expressão padecia dos mesmos problemas, pois uma pessoa que precisa de muito amor e carinho também tem uma “necessidade especial”. O uso da palavra “portador” também tentava descaracterizar uma condição permanente, pois quem “porta” pode deixar de “carregar” a tal condição…..

Entretanto, a condição de um portador da necessidade de amor e carinho é muito diferente daquela que as pessoas com deficiência física ou intelectual apresentam.

Então, esses eufemismos servem apenas para destacar a discriminação que certos indivíduos sofrem pelas condições diferenciadas que apresentam. No entanto, ao dissolverem o problema na linguagem, acabam colaborando para a invisibilidade das mesmas pessoas que tentam valorizar. Tanto é assim, que a própria comunidade das pessoas com deficiência  rejeitou a expressão “necessidade especial” e consolidou a sua sigla PCD.

Dito isso, podemos tratar dos transtornos mentais e da sua condição de invisibilidade social sem maiores subterfúgios. Recentemente, a Organização Mundial da Saúde apresentou um relatório sobre os transtornos mentais no mundo. Tal documento destaca a falta de atenção, de oportunidades de tratamento e a invisibilidade, em escala global,  do problema.

 

A situação geral da saúde mental

Anteriormente à COVID-19, estimava-se que 970 milhões de pessoas no mundo viviam com um transtorno mental. Segundo o relatório, essa distribuição não se dá por igual no mundo. 82% parecem ocorrer em países de baixa e média renda. O documento dá conta de que, entre 2000 e 2019, mais de 25% das pessoas viviam com transtornos mentais. Além disso, de acordo com várias estimativas, 283 milhões de pessoas tiveram transtornos por uso de álcool em 2016; 36 milhões tiveram transtornos por uso de drogas em 2019; 55 milhões tiveram demência em 2019 e outros 50 milhões tiveram epilepsia em 2015.

Ao destacar a visibilidade do problema em países de média e baixa renda, a OMS talvez tenha desconsiderado que a capacidade de “esconder” ou ocultar os problemas aumenta com a melhoria das condições sociais. Então, é possível que nos países em que a população tenha melhor renda, esses problemas também não se resolvam, mas que os incômodos advindos dos transtornos mentais sejam acomodados.

 

Sofrimento mental e emoções

Apesar da minha crítica à expressão “sofrimento mental“, no que se refere ao seu uso como substituta das psicopatologias, vale uma reflexão. Os transtornos mentais trazem, sim, muio sofrimento não só para o sujeito diretamente atingido, mas também para os que estão à sua volta. Dependendo do tipo de transtorno e da severidade de suas características, o convívio coletivo fica muito difícil, senão impraticável. Existem pessoas que são acometidas de alucinações, de pensamentos paranoicos e até de ideias suicidas. Pessoas que desenvolvem essas condições, e permanecem sem atendimento especializado, terão muita dificuldade para melhorar se não tiverem ajuda.

Então, apesar de não significar muito em termos de psicopatologia, o uso da palavra sofrimento expressa a situação geral pela qual a pessoa ou a família dela passa. É nesse contexto que faz sentido falar sobre emoções. Ninguém sabe ao certo o que são emoções e essa afirmação não é somente minha, mas pesquisadores famosos e dedicados inteiramente ao estudo das emoções compartilham dessa mesma percepção (e.g. Barrett & Westlin, 2021). As teorias sobre emoções, que hoje existem, são, na realidade, teorias sobre as respostas emocionais.

Respostas emocionais são a parte “visível” e observável do fenômeno emocional, que é, em si, muito mais complexo. Ao formular uma teoria, cada um dá a ênfase à resposta de sua preferência. Algumas teorias focam na ativação fisiológica [geralmente teorias ligadas à Psicologia Evolutiva] ou na expressão corporal e expressões faciais [também relacionadas com Psicologia Evolutiva]. Essa família de teorias sobre emoções ficou famosa pois a ativação fisiológica pode ser medida, com certa facilidade, por meio de instrumentos bem precisos. Então, obviamente, isso rende vários estudos e trabalhos científicos sem grandes dificuldades.

Ultimamente, tem havido um debate muito forte e diversos questionamentos sobre a real extensão das teorias de emoções básicas. A proliferação descomensurada de trabalhos e estudos científicos é um dos aspectos mais questionados. Os fãs do trabalho do Dr. Paul Ekman ainda verão muitos dos seus estudos serem questionados de forma bastante profunda e razoável (e.g. Ortony, 2022). Sobre isso, veja detalhes no artigo: A Face das Emoções

Outra “família” de teorias de emoções é conhecida como de avaliação [appraisal]. Essas teorias enfatizam como as pessoas percebem e dão distintas valências aos mesmos estímulos. Partem do pressuposto de que nem todos nós somos ativados pelas mesmas coisas. Uma cobra, por exemplo pode ativar uma pessoa e não chamar a atenção e outra.

Outras teorias se concentram na tendência a se comportar de determinada forma razoavelmente previsível [no contexto de uma determinada emoção], que também é uma resposta emocional. Outra família de teorias muito conhecida são as cognitivistas e relacionadas ao sentimento. Aquelas cuja estratégia é encontrar um “nome”, categorias, para as emoções se encaixam nessa família. Sentimento é a palavra que utilizamos para descrever a experiência subjetiva de uma pessoa com a emoção. É a parte narrativa, interpretativa da emoção, mas também não é a emoção em si. Fica bem fácil estudar o sentimento, pois é possível fazer uma entrevista ou aplicar um questionário e tirar muitas conclusões. Deve ser por esse motivo que essa família de teorias sobre emoções são tão populares e rendem tantos trabalhos científicos, pois o principal meio de ter acesso ao conteúdo é a narrativa da pessoa ou suas respostas a questionários padronizados. Entretanto, o sentimento, apesar de fazer parte do fenômeno emocional, não é a emoção em si.

Portanto, é fato que o fenômeno emocional, como um todo, é bem mais complexo do que apenas as suas respostas que podemos identificar.

Então, existe uma parte do fenômeno emocional que está mergulhado na dimensão não-consciente do psiquismo humano a qual não temos acesso pela narrativa dos sujeitos, nem pelos instrumentos de medida hoje disponíveis. Entretanto, em minha opinião, o grande problema não está em tentar estudar as respostas emocionais, mas sim em reduzir o fenômeno emocional às suas respostas. O mais correto a fazer é admitir que a teoria não é sobre emoções e sim sobre determinada resposta emocional…. Falar sobre as possibilidades e limitações do nosso conhecimento atual.

 

A pessoa como síntese de seus processos psico-fisiológicos

É nesse ponto que começamos a tratar sobre os transtornos mentais, as emoções e o sofrimento. Quando conseguirmos desfragmentar a compreensão sobre o ser humano, os métodos diagnósticos e de atenção ao sofrimento das pessoas vão melhorar muito. Quando falamos de comportamento, tratamos da parte observável da síntese que cada um de nós representa dos nossos próprios processos bio-psicológicos. Quando tratamos de comportamentos privados, nos referimos a algo que não está obviamente visível, mas que podemos ter acesso pela narrativa de cada sujeito. 

No entanto, a vida humana é muito mais do que podemos observar ou muito mais ampla do que a narrativa de alguém. O fato de não podermos ter acesso direto aos processos psicológicos não deve servir de desculpa para reduzirmos a existência humana somente ao que podemos observar ou medir…..

É nesse aspecto que as emoções ganham uma importância muito grande, pois estão presentes em todas as interações de processos psicológicos. Para exemplificar, é comum dizermos que alguém não foi bem numa prova porque ficou nervoso. O nervosismo, também pode ser um indicador de que alguém está mentindo. Ao nos movimentarmos, indicamos certas emoções e assim por diante.

Futuramente, veremos que muitas das psicopatologias hoje conhecidas e diagnosticadas serão atribuídas a alterações das emoções. Pode ser o caso, por exemplo, dos transtornos de personalidade. Alguns deles têm como indicadores principais os elementos relacionados com as emoções, como, por exemplo, o Transtorno de Personalidade Antissocial. Ao refletir com mais profundidade, a comunidade científica verá que não faz sentido falar de transtorno de personalidade, já que a personalidade é o resultado da interação de processos psicológicos, expresso pelas características desses processos. Se há um problema, este não pode estar no resultado e sim em algum(ns) dos seus processos psico-fisiológicos constituintes.

O próprio conceito de personalidade deverá ser questionado, pois representa uma visão fragmentada, em características, da interação entre processos psico-fisiológicos e de sua síntese.

Um exemplo que podemos apresentar está relacionado com a ansiedade. A bioquímica da ansiedade parece estar associada com o medo. Transtorno característico da sociedade moderna, provavelmente na sua base está a aceleração social (e.g. Elhai et al., 2020; Lee et al. 2020).  As teorias de emoções básicas fazem a relação entre a ansiedade e o medo. No espectro de emoções levantadas pelo Dr. Ekman, em seu Atlas das Emoções, a ansiedade consta na família do medo:

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Então, futuramente veremos a evolução de todos esses conceitos.

 

Conclusão

Para entendermos e logarmos êxito em lidar com os transtornos mentais, precisamos adotar uma visão integral do ser humano. Não basta apenas estudar as partes, mas também a síntese expressa pela vida de cada um de nós. Não somos apenas as nossas narrativas, nem somente os nossos comportamentos observáveis. Ainda que tal abordagem ainda não exista, todos os nossos esforços científicos e metodológicos deveriam estar direcionados a encontrar essa saída.

Os transtornos mentais trazem sofrimento não somente para as pessoas por ele afetadas, mas também para as que estão ao redor. A origem emocional de uma infinidade desses transtornos ainda está para ser reconhecida. Entretanto, em um mundo acelerado e orientado por valores coletivos de individualismo, ganância e consumo de bens, ficará cada vez mais difícil equacionarmos esses parâmetros.

Para complicar ainda mais o cenário, temos a aceleração social promovida pelos quase onipresentes sistemas cibernéticos digitais e seus prepostos gadgets de acesso remoto [smartphones etc]. Sobre isso veja os nossos artigos:

Coded Bias: O que falta nas Inteligências Artificiais?

Como fica a automação do reconhecimento de emoções?

O propósito de ganho financeiro que impulsiona seus criadores e mantenedores, nos faz ser assediados diuturnamente e ativados por esses sistemas que são ultra-rápidos, imbatíveis, incansáveis e que podem ser acessados que praticamente qualquer lugar. Nesse contexto, as nossas emoções estarão cada vez mais bagunçadas.

Em um cenário como esse, é de se esperar que os indicadores contidos nos relatórios da OMS sobre saúde mental somente piorem a cada edição, a não ser que algum milagre ocorra e a humanidade desacelere e passe a ser orientada por outras crenças e valores distintos do individualismo e da ganância. Há ainda muito sofrimento mental para ser, por nós, enfrentado.

Boa leitura

Sergio Senna

 

Referências

Barrett, L. F., & Westlin, C. (2021). Navigating the science of emotion. In Emotion measurement (pp. 39-84). Woodhead Publishing.

Elhai, J. D., Gallinari, E. F., Rozgonjuk, D., & Yang, H. (2020). Depression, anxiety and fear of missing out as correlates of social, non-social and problematic smartphone use. Addictive behaviors105, 106335.

Lee, S. A., Mathis, A. A., Jobe, M. C., & Pappalardo, E. A. (2020). Clinically significant fear and anxiety of COVID-19: A psychometric examination of the Coronavirus Anxiety Scale. Psychiatry research290, 113112.

Ortony, A. (2022). Are all “basic emotions” emotions? A problem for the (basic) emotions construct. Perspectives on Psychological Science17(1), 41-61.

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