Aceleração Social, Emoções e o Esgotamento no Trabalho

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Neste artigo nos propomos a discutir as possibilidades do emprego da abordagem da Psicologia Cultural Clínica, em articulação com outros referenciais, para a compreensão e para o estabelecimento de possíveis estratégias psicoterapêuticas e organizacionais para o enfrentamento à Síndrome de Burnout ou Síndrome do Esgotamento no Trabalho, nomenclatura que utilizaremos, preferencialmente, a partir desse ponto.

A Psicologia Cultural surge, inicialmente, a partir de uma demanda pela produção do conhecimento científico no campo da Psicologia do Desenvolvimento e Escolar. Entretanto, as características presentes na sua formulação a preparam para a sua apropriação pela Psicologia Clínica e pela Psicologia Organizacional, por meio da complementação por abordagens já consagradas e pode proporcionar alternativas mais modernas, complexas e abrangentes para conceitos tradicionais na Psicologia (RYDER; BAN; CHENTSOVA-DUTON, 2011; RYDER; CHENTSOVA-DUTON, 2014), como o de personalidade, por exemplo (Pires, 2022).

Faremos, então, uma análise teórica sobre as possíveis contribuições do aporte da Psicologia Cultural, em seu olhar integrativo e holístico da interação humana nos ecossistemas culturais, aplicado à Síndrome de Esgotamento no Trabalho (KAZARIAN, 1998; MAERKER, 2019). Apresentaremos, também, possibilidades de criação de protocolos de análise e de intervenção nos níveis clínico e organizacional em relação à Síndrome do Esgotamento no Trabalho.

Considerando que não existe uma única abordagem, em Psicologia, capaz de dar conta, integralmente, de tais transtornos mentais, faremos indicações de possíveis articulações com outros referenciais tradicionais, uma vez que a Psicologia Cultural Clínica, e o seu corpo conceitual e metodológico, se apresentam aptos para esse tipo de articulação, sendo compatível com qualquer abordagem já consagrada pela prática clínica.

 

Qual é a amplitude da Síndrome do esgotamento no Trabalho?

Quando se deseja realizar uma abordagem integral de um determinado transtorno mental, é necessário definirmos o escopo dos processos psicológicos e dos ecossistemas culturais que são relevantes para a compreensão do seu estabelecimento. Sobre os processos psicológicos e sobre o ecossistema cultural discorreremos mais adiante. Iniciemos, portanto, sobre como os organismos responsáveis pelas normas sanitárias vêm definindo a Síndrome do Esgotamento no Trabalho.

Recentemente, a Síndrome do Esgotamento no Trabalho passou a ser considerada uma doença ocupacional, a partir de 1º de janeiro de 2022, após a sua inclusão na Classificação Internacional de Doenças (OMS-2021).

Nessa mesma direção, o Ministério da Saúde (2023) define a Síndrome de Burnout, ou Síndrome do Esgotamento Profissional:

[…] como um distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastante, que demandam muita competitividade ou responsabilidade”. 

Esta síndrome é comum em profissionais que atuam diariamente sob pressão e com responsabilidades constantes, como médicos, enfermeiros, professores, policiais, jornalistas, e trabalhadores do Poder Legislativo, entre outros.

O DSM-5 (APA, 2014), Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, que é o documento utilizado como referência para a realização do psicodiagnóstico, não possui uma posição específica para a Síndrome do Esgotamento Profissional. Sob o ponto de vista do psicodiagnóstico, seria relevante o debate sobre em que categoria estaria incluído. Se aproxima dos Transtornos de Ansiedade, Depressivos, de Ajustamento? Não é o nosso objetivo, entretanto, realizar uma reflexão aprofundada em relação ao debate sobre a melhor adequação diagnóstica para essa síndrome, mas a literatura científica parece indicar que, enquanto não há estudos aprofundados que embasem essa definição, ele seja enquadrado dentro da categoria de Transtornos Relacionados a Traumas e Estressores.

Nessa categoria, encontra-se o Transtorno de Ajustamento, que pode ser caracterizado pelo desenvolvimento de sintomas emocionais ou comportamentais em resposta a um estressor ou estressores identificáveis, que ocorrem dentro de 3 meses após o início do(s) estressor(es) e não fazem parte de um processo normal de luto (APA, 2014). 

De acordo com a CID-11 (OMS, 2021), a síndrome é caracterizada por três eixos: (1) a sensação de esgotamento; (2) o aumento da distância mental do trabalho ou sentimentos de negativismo ou cinismo relacionados ao trabalho; e (3) a redução da eficácia profissional.

Sobre as características e sobre os indicadores, discutiremos mais adiante depois de apresentar as possibilidades e limitações das abordagens que trazemos à reflexão, o que faremos na sequência.

 

Por que uma abordagem integral é relevante para o enfrentamento à Síndrome do Esgotamento no Trabalho?

Uma boa parte do conhecimento psicológico construído até os dias de hoje é fragmentado (CHAUDHARY et al., 2022; MAMMEN, 2021). Foi e, em parte, continua sendo construída a partir de metodologias herdadas do estudo das ciências naturais (BUDWIG, 2021). Entretanto, desde o movimento que ficou conhecido como “Virada Interpretativa” (CHIRKOV, 2020), essa visão vem se alterando, acelerando-se a elaboração de referenciais que buscam a integralidade na formulação das propostas de compreensão do comportamento e do psiquismo humano, sem negar a nossa incapacidade metodológica de acessarmos toda a amplitude de processos e funções psicológicas.

Antes da virada interpretativa, as ciências humanas, incluindo a Psicologia, eram fortemente influenciadas pelo positivismo, que enfatizava o uso de métodos objetivos para estudar fenômenos observáveis. No entanto, com o surgimento do pós-modernismo e a crítica das abordagens científicas tradicionais, os estudiosos começaram a questionar a validade e as limitações desses métodos, quando aplicados às ciências humanas, e procuraram desenvolver novas abordagens que enfatizam a subjetividade e a relevância das interações no contexto cultural.

A virada interpretativa destacou a importância de compreender a experiência e o comportamento humanos em seu contexto cultural e histórico, e o papel da linguagem na formação dessa experiência, diante das internalizações e externalizações de elementos simbólicos e o seu entrelaçamento com as emoções, os principais guias das decisões humanas. Ao invés de tentar identificar leis objetivas e universais do comportamento, a virada interpretativa inaugurou o entendimento de que os significados são construídos por meio da linguagem em íntima relação com o contexto cultural no cotidiano, compreendidos sob o ponto de vista de ecossistemas (WU; XU; LI, 2021) nos quais as trocas simbólicas e o resultado contínuo das interações influencia, decisivamente, os comportamentos, incluindo o adoecimento.

A importância de privilegiar a adoção de um ponto de vista psicológico integral é, portanto, enfatizar a relevância da interconexão de diferentes fatores e contextos e de reconhecer que os fenômenos psicológicos são complexos, multifacetados, fluídos e extremamente dependentes das interações que cada um de nós estabelece com os diversos ambientes e com os demais sujeitos. É também a reafirmação da compreensão de que qualquer aspecto do comportamento ou da experiência subjetiva humana requer a consideração de vários níveis de análise conjunta, como aspectos biológicos, psicológicos, sociais e culturais, que se sintetizam na vida de cada sujeito. Uma abordagem integral também reconhece a importância da experiência subjetiva dos processos de significação pessoais e das diferenças entre os indivíduos, bem como os processos de (re)orientação canalizadora que as práticas e valores sociais exercem sobre cada um de nós (BRANCO, 2021).

Nesse contexto, uma abordagem nativamente fragmentada, como a positivista, pode limitar nossa compreensão sobre os fenômenos complexos e sistêmicos. Sob a ótica da Psicologia Cultural Clínica, isolar variáveis ou o sujeito significa deixar de considerar elementos essenciais para o entendimento das suas dinâmicas psicológicas. Por exemplo, um estudo que se concentra apenas nos fatores biológicos ou genéticos relacionados a um determinado transtorno de saúde mental pode ignorar os fatores sociais, culturais ou até mesmo a forma transpsicológica que determinado sujeito conduz nas suas interações e que contribuem para a prevalência do transtorno ou como diferentes indivíduos o vivenciam de forma, até mesmo, completamente diversa. Esse parece ser o caso da Síndrome do Esgotamento no Trabalho (PEREIRA et al., 2020).

Portanto, ao adotarmos uma perspectiva mais ampla, sistêmica e integrativa, podemos desenvolver uma compreensão mais sutil, porém profunda e abrangente, sobre os fenômenos psicológicos e sobre as suas manifestações emocionais, fisiológicas, semióticas e interacionais.

 

Como a Psicologia Cultural se encaixa para a compreensão integral da Síndrome do Esgotamento no Trabalho?

sindorme-de-esgotamento-no-trabalho-burnout-ibrale-educacao-sociomocional-450-RComo anteriormente explicado, a Psicologia Cultural emergiu do campo da Psicologia do Desenvolvimento e enfatiza a importância do contexto cultural e das interações para o desenvolvimento e comportamento humanos. De acordo com Valsiner (2014, 2016, 2021), a cultura não é simplesmente uma influência de fundo, mas uma força ativa que orienta a experiência subjetiva e o comportamento humanos, bem como é objeto da transformação por nós operada.

Nesse referencial se postula que o contexto cultural influencia não apenas o desenvolvimento dos indivíduos, mas também a maturação de processos psicológicos, tais como: os processos perceptivos; a memória; a internalização e externalização do conteúdo simbólico e semiótico que nos servem para pensar, para lembrar e para dar significado às experiências vividas. Essa abordagem se concentra no estudo dos sistemas de significado cultural e como eles influenciam o comportamento humano, incluindo as emoções, a cognição, a motivação e, em última análise, as nossas decisões (BUDWIG, 2021).

Em relação à abordagem clínica em Psicologia, a Psicologia Cultural sugere que o contexto cultural, individual e coletivo, deve ser levado em alta consideração ao avaliar e tratar problemas de saúde mental (MAERCKER; HEIM; KIRMAYER, 2019). Por exemplo, o significado e a expressão dos sintomas podem diferir entre as culturas e o tratamento deve ser adaptado ao contexto cultural do indivíduo. É essencial considerar que cada ser humano possui a capacidade de se reconfigurar de acordo com as pessoas que estão à sua frente e considerando as condições ambientais e sociais. Além disso, elementos culturais como o apoio social e as trocas simbólicas na família podem desempenhar um papel no desenvolvimento, na manutenção ou na solução de problemas de saúde mental.

No caso da Síndrome do Esgotamento no Trabalho, esse aspecto pode ser extremamente relevante, já que fica evidente que ela ocorre em meio às interações do indivíduo com o seu ecossistema cultural (PEREIRA et al., 2020) onde se inserem as principais relações por ele mantidas, como o trabalho, as mídias sociais e as demais relações com os demais seres e objetos.

Por ecossistemas culturais podemos entender que são o resultado de uma evolução de diversas teorias que foram surgindo a partir da busca por uma visão sistêmica para a compreensão do ser humano. Tais iniciativas se consolidaram a partir do trabalho de Urie Bronfenbrenner (1979, 1986) que se dedicou a elaborar uma teoria ecológica para explicar o desenvolvimento humano. Nesse contexto, a Psicologia Cultural prosseguiu nessa elaboração, enfatizando a importância da compreensão do contexto cultural na construção da experiência humana como um todo, incluindo nossos comportamentos, de onde se origina a expressão ecossistemas culturais. Estes se referem aos sistemas culturais dinâmicos e interconectados nos quais os indivíduos estão inseridos e que orientam o seu desenvolvimento e comportamento pessoais.

Sobre esse tema, Xu et al (2021) nos explicam que os ecossistemas culturais são constituídos por múltiplas camadas, incluindo as individuais, sociais e culturais. A camada individual inclui elementos pessoais, como a interação entre os processos intrapsicológicos, entre eles, os processos de significação e de construção do self. A camada social inclui, por exemplo, relacionamentos interpessoais e redes sociais digitais e reais. A camada cultural inclui os significados, crenças e valores compartilhados que orientam o comportamento humano dentro de um contexto cultural específico e se desdobram numa relação multipolar com os processos intrapsicológicos e nas interações colaterais com os demais seres humanos (PIRES; BRANCO, 2023a, 2023b). Esse parece ser exatamente o contexto que precisa ser considerado para a compreensão da Síndrome do Esgotamento no Trabalho.

Os ecossistemas culturais são dinâmicos e estão em constante mudança, pois os indivíduos interagem uns com os outros e com seu contexto cultural. Então, para a devida compreensão desse transtorno, é necessário enfatizar a importância de estudar as relações complexas e recíprocas entre os indivíduos e seus ecossistemas culturais e como estas pessoas vêm conduzindo os seus processos de significação, as suas decisões e, consequentemente, os seus comportamentos nesses ambientes.

Ao examinarmos os ecossistemas culturais, poderemos formular compreensões mais abrangentes sobre o comportamento e a experiência humana do que muitas das abordagens tradicionais em Psicologia Clínica, que tendem a concentrar a sua análise no nível individual. Essa abordagem também pode informar intervenções e tratamentos que levam em consideração os contextos do indivíduo, levando a abordagens mais eficazes e culturalmente sensíveis à saúde mental e ao bem-estar não somente sob o ponto de vista individual, mas também sob a ótica preventiva a ser desenvolvida pelas organizações. Articulam-se, portanto, estratégias psicológicas clínicas e organizacionais ao abordar esse tipo de transtorno, o que pode levar a soluções interventivas mais elaboradas e efetivas.

Além disso, é necessário considerar como as ações das outras pessoas podem influir na construção das condições de um ambiente organizacional que orienta e promove estados depressivos, ansiosos e de difícil adaptação. Sobre isso Pires (2022) nos explica que pessoas com características similares às do Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS) possuem aptidões para atuar numa sociedade que prioriza os valores do individualismo e da ganância. Esses indivíduos mostram-se capazes para adotar, dissimuladamente, comportamentos antiéticos, transparecendo como profissionais corajosos, assertivos, capazes e realizadores. Tais indivíduos são conhecidos como psicopatas funcionais, cuja identificação representa um desafio para os gestores organizacionais e para as equipes das seções de recursos humanos. Os processos avaliativos, baseados apenas nos resultados obtidos, mostram-se pouco sensíveis para diferenciar entre: (1) falta de empatia e coragem; (2) egoísmo e zelo; e (3) manipulação e liderança. Então, esses perversos indivíduos podem estar na raiz da disseminação de práticas promotoras da Síndrome de Esgotamento no Trabalho, o que deve merecer a nossa atenção.

A partir das definições anteriormente apresentadas sobre a Síndrome do Esgotamento no Trabalho, podemos inferir que ela se constrói a partir não só da sobrecarga de trabalho, mas, principalmente dos processos de significação que ocorrem em meio às interações humanas. Sobre isso, a Psicologia Cultural introduz conceitos interessantes e diferenciados que nos servem para prover inteligibilidade sobre o seu estabelecimento, sobre a sua avaliação e sobre as possíveis alternativas para intervenção.

 

Comportamento como indicadores dos processos e funções intrapsicológicas

Sob o ponto de vista psicológico, o comportamento pode ser considerado como uma expressão da interação dos processos intrapsicológicos de um indivíduo, incluindo seus pensamentos, emoções e motivações. Dessa forma, o comportamento pode servir como um indicador indireto desses processos.

Por exemplo, se um indivíduo está se sentindo ansioso ou estressado, como na Síndrome de Esgotamento no Trabalho, ele pode exibir comportamentos como inquietação, evitar contato visual ou falar rapidamente. Esses comportamentos podem fornecer pistas sobre seu estado mental e sugerir que está passando por ansiedade ou estresse. Semelhantemente, um indivíduo com baixa autoestima pode apresentar comportamentos como evitar situações sociais, falar baixo, de forma hesitante ou buscar validação constante de outras pessoas. Esses comportamentos podem indicar a existência de conflitos intrapsicológicos entre a autoestima e a confiança.

No geral, o comportamento pode ser um indicador valioso de processos intrapsicológicos, fornecendo pistas sobre o estado mental, as motivações e sobre as emoções de um indivíduo. Então, na metodologia para avaliação da Síndrome do Esgotamento no Trabalho, podemos utilizar uma abordagem híbrida proveniente da compreensão das relações que se estabelecem no ambiente de trabalho a partir das interações do indivíduo com os elementos simbólicos sociais, as práticas coletivas e a inter-relação com os demais sujeitos naquele ambiente.

Caso essas interações conduzam a estados emocionais desequilibrados e orientados à ansiedade e ao medo, é possível a criação de condições para o estabelecimento do esgotamento no trabalho, o que será abordado a seguir.

 

Esgotamento como resultado de um processo de ansiedade

O esgotamento no trabalho e a ansiedade estão relacionados de várias maneiras, e pesquisas científicas sugerem evidências de uma forte ligação entre os dois (DOBRACHINSKI et al., 2022; KOUTSIMANI; MONTGOMERY; GEORGANTA, 2019; MAIA, 2022). Em primeiro lugar, o esgotamento pode levar à ansiedade. Quando um indivíduo experimenta o esgotamento no trabalho, ele pode se sentir sobrecarregado, emocionalmente esgotado e ter a percepção de sua realização pessoal reduzida. Isso pode levar a percepções de desamparo e perda de controle, que são indicadores conhecidos da ansiedade.

Em segundo lugar, a ansiedade pode contribuir para o esgotamento. Quando um indivíduo experimenta ansiedade, ele pode se tornar hipervigilante, facilmente distraído e ter dificuldade de concentração. Esses sintomas podem dificultar o atendimento às demandas do trabalho e levar a uma sensação de frustração e esgotamento.

Além disso, o esgotamento e a ansiedade podem ter fatores de risco semelhantes. Por exemplo, trabalhar longas horas, altas demandas de trabalho e baixo controle da demanda do trabalho foram associados tanto ao esgotamento quanto à ansiedade (SILVA JÚNIOR; VALENÇA; ROCHA-FILHO, 2022).

No geral, diversos estudos científicos recentes (BIANCHI; SCHONFELD; LAURENT, 2015; GOLONKA et al., 2019; KOUTSIMANI; MONTGOMERY; GEORGANTA, 2019) sugerem que o esgotamento, a ansiedade e a depressão estão intimamente relacionados. Nesse contexto é necessário levar em consideração ambas as condições ao avaliar e tratar indivíduos que podem estar passando por estresse relacionado ao trabalho ou outros problemas de saúde mental.

 

Ansiedade, o medo e os seus impactos fisiológicos

A ansiedade pode estar relacionada ao medo de várias maneiras, e ambos podem desencadear respostas fisiológicas semelhantes no corpo. Quando um indivíduo experimenta ansiedade ou medo, o Sistema Nervoso Simpático é ativado, levando a uma resposta emocional fisiologicamente mais intensa. Essa resposta desencadeia a liberação de diversas substâncias químicas, como o cortisol e a adrenalina, que preparam o corpo humano para a realização de esforços extras (ASSIS et al., 2022). Entretanto, essa preparação natural do organismo humano para reagir a um imprevisto não ocorre para permanecer ativada durante um período. Pois a ação dessas substâncias não é apenas benéfica, mas também desgasta e exaure a energia dos sistemas em que atua.

Na ansiedade, a mesma resposta fisiológica de medo pode ser desencadeada por ameaças percebidas ou estressores que não são necessariamente imediatos ou ameaçadores à vida, como situações sociais ou eventos futuros e imaginados.

Da mesma forma, o medo também está associado a respostas fisiológicas, como aumento da frequência cardíaca, da pressão arterial e da tensão muscular. O medo é normalmente desencadeado por uma ameaça imediata percebida, como estar em perigo ou enfrentar uma situação de risco.

Em geral, a ansiedade e o medo compartilham efeitos fisiológicos semelhantes e estão relacionados em termos de suas respostas emocionais e fisiológicas. Compreender essas conexões pode ajudar os indivíduos e os profissionais de saúde mental a identificarem e gerenciarem melhor os sintomas relacionados à ansiedade e ao medo (GOLONKA et al., 2019).

 

Interação como via de promoção do esgotamento no trabalho

A teoria da aceleração social, conforme conceituada pelo sociólogo alemão Hartmut Rosa (2010), sustenta que as sociedades modernas são caracterizadas por uma rápida aceleração do tempo, resultando em uma maior demanda por eficiência, produtividade e capacidade de resposta. Rosa propõe que essa aceleração é impulsionada pelos constantes avanços tecnológicos e pelas demandas de uma economia globalizada e acelerada.

Segundo Rosa (2020), essa aceleração leva a uma confusão entre as fronteiras do trabalho e da vida pessoal, já que se espera que os indivíduos estejam constantemente disponíveis e receptivos. Essa pressão constante para ser produtivo e eficiente pode resultar em sentimentos de estresse, ansiedade, pressão pelo tempo e, consequentemente, à Síndrome do Esgotamento no Trabalho.

Rosa identifica três dimensões da aceleração social: (1) a aceleração técnica, que se refere ao rápido desenvolvimento da tecnologia e seu impacto na sociedade; (2) aceleração da mudança social, que se refere à velocidade com que as normas, valores e práticas sociais estão mudando; e (3) a aceleração do ritmo de vida, que se refere à demanda constante por produtividade e eficiência em todas as áreas da vida.

Podemos acolher a Teoria da Aceleração Social (BAHRS, 2019) como associada ao esgotamento no trabalho de várias maneiras. A pressão constante para ser produtivo e eficiente em um ambiente de ritmo acelerado pode levar à sobrecarga de trabalho, que é um dos principais contribuintes para o esgotamento. Indivíduos que trabalham constantemente em ritmo acelerado podem sentir exaustão emocional, redução da realização pessoal e despersonalização, que são todos sintomas de esgotamento no trabalho.

Além disso, a aceleração social pode contribuir para uma indefinição das fronteiras entre trabalho e vida pessoal. Um estudo recente (BANKS, 2019.) indica que a presença 24 horas por dia, 7 dias por semana da tecnologia moderna e a demanda constante para estar disponível e responsivo podem levar a sentimentos de estar constantemente trabalhando e incapaz de se desconectar dos seus afazeres. Isso pode contribuir para o estresse e esgotamento relacionados ao trabalho, pois os indivíduos podem não ter tempo adequado para recarregar e se recuperar das demandas laborais.

Além disso, a aceleração social pode levar a uma sensação de pressão e uma percepção de estar constantemente sendo ultrapassado, o que pode contribuir para o aumento do estresse e da ansiedade e, consequentemente, aumentar o risco de esgotamento.

No geral, a teoria da aceleração social fornece elementos importantes para a compreensão dos fatores ambientais e culturais que contribuem para o esgotamento. A pressão constante para ser produtivo, eficiente e responsivo pode levar à sobrecarga de trabalho e estresse, o que pode contribuir para o esgotamento no trabalho. Ao abordar as causas subjacentes da aceleração social e priorizar o bem-estar e o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, indivíduos e organizações podem trabalhar para prevenir e gerenciar o esgotamento. Ao articularmos a aceleração social com a metodologia de análise da Psicologia Cultural, podemos obter uma compreensiva inteligibilidade dos diversos elementos significativos dos ambientes de trabalho, da interação e das internalizações dos indivíduos que são relevantes para estabelecermos os itens que podem ser utilizados para criar protocolos de análise tanto clínicas, quanto organizacionais, o que veremos a seguir.

 

Organização e revisão dos processos de trabalho e individuais para a mitigação do esgotamento no trabalho

A compreensão da síndrome de esgotamento no trabalho, em determinado ambiente, envolve uma série de estratégias que visam levantar o estresse relacionado ao trabalho e a diminuição da percepção de bem-estar. Essas estratégias incluem abordagens individuais e organizacionais. A partir de nossas observações, podemos levantar os seguintes itens que servirão de elementos para a elaboração futura de um protocolo de análise clínico-organizacional sobre o ponto de vista individual quanto: (1) autocuidado; (2) estabelecimento de limites entre o pessoal e o laboral; (3) priorização de tarefas; (4) aceleração social; (5) busca por apoio. No que diz respeito aos aspectos organizacionais podemos levantar: (1) promoção do equilíbrio entre vida pessoal e profissional; (2) oferta de recursos; (3) incentivo ao descanso e a recuperação; (4) aceleração social.

No nível de avaliação individual, as estratégias sobre o esgotamento no trabalho incluem:

Autocuidado: levantar os hábitos de autocuidado, como as rotinas relacionadas: (1) ao repouso e ao sono; (2) alimentação; (3) realização regular de exercícios físicos; (4) uso de substâncias psicoativas; (5) desenvolvimento do convívio social; (6) atividades de lazer; (7) lidar com pessoas negativas em sua vida profissional.

Estabelecimento de limites: levantar como o indivíduo: (1) estabelece limites claros entre trabalho e sua vida pessoal; (2) define horários de trabalho específicos; (3) é bem-sucedido em se desligar do trabalho fora do horário previsto; (4) conduz a sobreposição entre vida profissional e pessoal.

Priorização de tarefas: levantar como a pessoa: (1) identifica as tarefas mais urgentes; (2) estabelece critérios de relevância entre as suas tarefas; (3) percebe a sobrecarga no trabalho; e (4) regula suas atividades diante da necessidade de controle pessoal; (5) prioriza e articula suas tarefas laborais em relação aos objetivos pessoais.

Aceleração social: Levantar como a pessoa: (1) usa o telefone celular; (2) responde às demandas com tempo exíguo para a sua execução; (3) interage com as demandas organizacionais por aceleração e obtenção de resultados.

Busca por apoio: levantar as estratégias individuais na busca por apoio de colegas, amigos ou profissionais de saúde mental. 

Na avaliação organizacional, as estratégias para abordar o esgotamento incluem:

Promoção do equilíbrio entre vida pessoal e profissional: levantar se as práticas sociais, crenças e valores da organização: (1) promovem o equilíbrio entre vida pessoal e profissional; (2) oferecem acordos de trabalho flexíveis.

Oferta de recursos: levantar se as organizações: (1) oferecem programas de assistência aos funcionários; (2) treinamento em gerenciamento de estresse; oferta de (3) serviços de saúde mental para ajudar os funcionários a gerenciar o estresse e prevenir o esgotamento. (4) promovem escutas ativas das questões dos funcionários.

Incentivar o descanso e a recuperação: as organizações podem incentivar os funcionários a fazer pausas regulares e folgas para descansar e se recuperar do estresse relacionado ao trabalho.

Aceleração social: Abordar as causas subjacentes da aceleração social, como a demanda constante por produtividade e eficiência, pode ajudar a reduzir o estresse e o desgaste associados a essas pressões.

 

Considerações Finais

No geral, a prevenção do esgotamento no trabalho requer uma abordagem inovadora e multifacetada que considere o indivíduo em meio às suas interações sociais e também os aspectos intrapsicológicos sobre como ele dá sentido às suas experiências e ao seu trabalho. Ao priorizar o bem-estar, promover o equilíbrio entre vida pessoal e profissional e abordar as consequências negativas da aceleração social, indivíduos e organizações podem prevenir o esgotamento. Entretanto, é necessário construir protocolos de avaliação e de atendimento para o caso de haver necessidade de atenção psicológica especializada. Para tanto, a Psicologia Cultural e sua capacidade de articulação com qualquer outra abordagem clínica tradicional tem muito a oferecer para essa temática, de forma inovadora.

 

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