Aptos para serem antiéticos: a psicopatia funcional

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A psicopatia funcional é uma realidade no mundo do trabalho. Aptos para serem antiéticos, esses seres sem limites promovem toda classe de discórdias e de comportamentos nocivos às outras pessoas.

No artigo que publicado na Revista Contemporânea, realizei uma análise teórica sobre como a pessoa com características similares às do Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS) possui aptidões para atuar numa sociedade que prioriza os valores do individualismo e da ganância.

Essas pessoas demonstram maior capacidade para adotar comportamentos antiéticos o que pode favorecê-las para que essas pessoas transpareçam como profissionais corajosos, assertivos, capazes e realizadores. Infelizmente, existe uma confusão, nada trivial, entre (1) falta de empatia e coragem; (2) egoísmo e zelo; e (3) manipulação e liderança, quando se analisam apenas os resultados individuais ou coletivos.

Tais indivíduos são conhecidos como psicopatas funcionais. Sob o ponto de vista psicológico, uma grande parte dos indicadores relacionados à psicopatia funcional parecem estar associados a alterações na função reguladora que as emoções exercem sobre o processo decisório humano.

A psicopatia funcional

O termo psicopatia não aparece no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) e nem na Classificação Internacional de Doenças (CID-10). É uma designação utilizada nas pesquisas científicas e no senso comum. Apesar de ser um tema polêmico (Albin, 2022; Jurjako; Malatesti, 2022), refere-se a um espectro de transtornos mentais genericamente denominados de antissociais ou dissociais. 

No DSM-V (2013), o TPAS é classificado como um transtorno da personalidade. Conceito esse que provavelmente será questionado pelo avanço científico no campo da Psicologia. É uma concepção antiga e cientificamente formulada no contexto de teorias surgidas no Século XIX e desenvolvidas no decorrer do século seguinte. Personalidade é, em síntese, o resultado da interação entre certos processos e funções psicológicas que evidenciam as características apresentada por uma pessoa em sua forma de pensar, de sentir e de se comportar (Costa et al., 2019; Crocq, 2022). 

aptos-para-serem-antieticos-ibraleTal visão representa uma concepção fragmentada dos processos psicológicos humanos, aspecto que vem sendo confrontado pelas mais recentes Teorias de Self. Segundo essa nova ótica, o self pode ser compreendido como uma síntese integral e ampliada dos processos e funções psicológicas, incluindo novas dimensões como, por exemplo, as interações sociais reais e imaginadas como elementos constituintes da pessoa (Konopka; Hermans; Gonçalves, 2019). 

Modernamente, é possível dizer que as características que balizam o diagnóstico do Transtorno de Personalidade Antissocial estão intimamente relacionadas a problemas no papel regulador que as emoções realizam no processo decisório e no sistema motivacional humano (Baliousis et al., 2019; Marsden et al., 2019). Então, futuramente, veremos diversos questionamentos à classificação atual, levando o debate ao território das psicopatologias das emoções.

A psicopatia funcional representa, portanto, um desafio para os gestores organizacionais e para as equipes das seções de recursos humanos. Ademais, os processos avaliativos, baseados apenas nos resultados obtidos, mostram-se pouco sensíveis para diferenciar entre: (1) falta de empatia e coragem; (2) egoísmo e zelo; e (3) manipulação e liderança.

 

Conclusão

A presença de pessoas com indicadores de psicopatia funcional é uma realidade no mundo corporativo. Esse fenômeno não é somente confirmado por diversos estudos científicos, mas também pela experiência pessoal de cada um de nós ao longo da nossa vida profissional. Nesse contexto, uma grande parte dos indicadores relacionados à psicopatia funcional parece estar associada a alterações na função reguladora que as emoções exercem, por meio das crenças e valores, sobre o sistema decisório humano. Entre outros processos, ressalta-se a importância da empatia para que comportamentos prossociais e altruístas ocorram. Ao apresentarem deficiência nesse circuito regulatório, os psicopatas funcionais não experimentam o poder emocional autônomo e aversivo de sua própria consciência ao violar uma crença ou valor.

Para determinadas organizações direcionadas à ganância, ao individualismo e ao acúmulo de ativos, esse perfil pode transparecer como eficiente e resolutivo. Podem, ainda, ser considerados desejáveis por certas empresas para assumirem a função de feitores modernos, incumbidos de alcançar objetivos ambiciosos e de impor duras condições para que outros colaboradores também os atinjam.

Essas pessoas são adequadas às práticas sociais dos ambientes individualistas e promotores da ambição. As suas sutis e perversamente ambíguas estratégias tornam a psicopatia funcional de difícil avaliação. Nesse contexto, os processos avaliativos gerenciais, baseados nos resultados atingidos por equipes ou pessoas, mostram-se pouco sensíveis para identificar as estratégias utilizadas por essas pessoas e para diferenciar entre a forma como se apresentam e o que realmente são. Isso, sem tratar da possível desinteresse organizacional em intervir nas estratégias de colaboradores, mesmo as antiéticas, que, de alguma forma, as beneficiem.

Em meio à manipulação que promovem no ambiente de trabalho, é fácil que se confunda: (1) falta de empatia com coragem; (2) egoísmo com zelo; e (3) manipulação com liderança. Tomando isso em conta, e considerando as avançadas habilidades dessas pessoas para dissimularem as suas perversas estratégias, é extremamente difícil a identificação desses indivíduos, o que nos indica que eles estão à nossa volta e que, mantida a orientação cultural das empresas para o individualismo e para a ganância, provavelmente vieram para ficar.

Veja o artigo completo:

Pires, S. F. S. . (2022). Aptos para serem antiéticos: a psicopatia funcional nas organizações. Revista Contemporânea2(4), 106–121. https://doi.org/10.56083/RCV2N4-007

Pires, Sergio Fernandes Senna. (2023). Fit to be unethical: functional psychopathy in organizations. International Journal of Human Sciences Research.

 

Referências

Albin, R. (2022). Organizational and Moral Portraits of Responsibility. Journal of Human Values, 09716858221095877.

American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 5th ed. Washington: American Psychiatric Association.

Baliousis, M., Duggan, C., McCarthy, L., Huband, N., & Völlm, B. (2019). Executive function, attention, and memory deficits in antisocial personality disorder and psychopathy. Psychiatry Research, 278, 151-161.

Costa Jr, P. T., McCrae, R. R., & Löckenhoff, C. E. (2019). Personality across the life span. Annual review of psychology, 70, 423-448.

Crocq, M. A. (2022). Milestones in the history of personality disorders. Dialogues in clinical neuroscience, 15(2), 147-153.

Jurjako, M., Malatesti, L. (2022). The Value-Ladenness of Psychopathy. In: Malatesti, L., McMillan, J., Šustar, P. (eds), Psychopathy. History, Philosophy and Theory of the Life Sciences, vol 27. Cham: Springer.

Konopka, A., Hermans, H. J., & Gonçalves, M. M. (2019). The dialogical self as a landscape of mind populated by a society of I-positions. In A. Konopka, H. Hermans, & M. Gonçalves (Eds.), Handbook of dialogical self theory and psychotherapy: Bridging psychotherapeutic and cultural traditions, 9-23.

Marsden, J., Glazebrook, C., Tully, R., & Völlm, B. (2019). Do adult males with antisocial personality disorder (with and without co-morbid psychopathy) have deficits in emotion processing and empathy? A systematic review. Aggression and violent behavior, 48, 197-217.

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