Você pode confiar no detector de mentiras?

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Você pode confiar no detector de mentiras? Um dos temas mais polêmicos sobre o uso do polígrafo é a sua confiabilidade. A partir do conhecimento científico, não é possível afirmar se o o polígrafo é realmente confiável nos níveis indicados por certos estudos [> 90%].

Sem dúvida alguma, caso a pessoa acredite que aquela máquina é apta para “extrair” a verdade, ela ficará mais propensa para conta-la espontaneamente. Esse é um uso secundário do polígrafo: um dissuasor psicológico que faz a pessoa dizer a verdade por conta própria.

 

O polígrafo como dissuasor

Vemos esse uso em um documentário da Netflix intitulado “Cenas de um homicídio: uma família vizinha“. Esse documentário, usando materiais de filmagem em primeira mão, este documentário analisa o desaparecimento de Shanann Watts e suas filhas, além dos terríveis acontecimentos posteriores.

Equifinalidade é o princípio de que, em sistemas abertos, um mesmo estado final pode ser alcançado por razões e caminhos diferentes.

O termo e o conceito se devem a Hans Driesch, o biólogo do desenvolvimento, posteriormente aplicado por Ludwig von Bertalanffy, o fundador da Teoria Geral dos Sistemas, e por William T. Powers, o fundador da Teoria do Controle Perceptual.

Em uma das filmagens, extraídas de vídeo gravados pela polícia, temos a utilização de um polígrafo. Nessa cena, a operadora do polígrafo, antes de usar a máquina, diz: “você sabe  que agora apenas uma pessoa nessa sala sabe a verdade. Quando o teste terminar, serão duas….”.

Com essa fala, ela demonstra a intenção de criar na pessoa a ser testada a convicção de que a máquina será capaz de extrair a verdade. O que está bem longe de ser correto, mesmo considerando as melhores estimativas sobre a precisão do polígrafo.

Afirmo isso com base no seu próprio funcionamento. O polígrafo é uma máquina que possui sensores para medir as alterações do Sistema Nervoso Autônomo [sobre isso veja o nosso artigo: O que é o detector de mentiras?].

Então ele não extrai mentiras, ele registra alterações no sistema nervoso, que pode ocorre por diversos motivos, incluindo fenômenos não relacionados à mentira. Isso se explica pela aplicação do princípio da equifinalidade ao comportamento humano.

No caso do suspeito mostrado no documentário acima mencionado, quase que imediatamente, ele começa a confessar o crime no qual assassinou sua mulher e as duas filhas.

Então, nesse caso, o uso do polígrafo se deu como persuasor e não como extrato da verdade, mas o resultado foi a confissão realizada pelo suspeito [porque acreditou na conversa da investigadora] e a solução do crime.

 

Algumas perguntas interessantes sobre confiar no detector de mentiras

Alguém pode enganar o polígrafo?

Sim! Isso é feito alterando os sinais fisiológicos quando respondendo as perguntas-controle [perguntas que a pessoa não pode mentir], como confirmar o nome da mãe ou a idade. A pessoa atinge esse objetivo produzindo dor [mordendo a lingua, pressionando os dedos dos pés] ou imaginando algo traumático [1].

Alguém pode falhar ao polígrafo mesmo falando a verdade?

Sim! Algumas pessoas que estão dizendo a verdade podem falhar aos testes do polígrafo por tentarem controlar as respostas de seu corpo [2].

confiar no detector de mentirasTomar drogas [relaxantes musculares e outras] afeta o resultado do polígrafo?

Sim! Antidepressivos, como lítio, Prozac, Valium, Xanax e betabloqueadores, podem afetar o resultado de um exame de polígrafo [3], pois o seu efeito é alterar as reações fisiológicas diante de certas emoções. Entretanto, antes do teste, será perguntado se o sujeito está tomando algum tipo de medicação .

É possível afirmar que o polígrafo é preciso?

A American Polygraph Association, que estabelece padrões para esses testes, diz que os polígrafos são “altamente precisos”, mencionando uma taxa de precisão acima de 90% [4] quando feitos corretamente.

Os críticos, no entanto, dizem que a precisão dos testes se posiciona entre 50 e 70% e que os resultados não são confiáveis [5].

 

Palavras finais sobre o detector de mentiras e a confiabilidade do polígrafo

Em 2010, adquiri um polígrafo para realizar testes, em minhas aulas, mostrando que confiar no detector de mentiras não é melhor do que usar a observação atenta do comportamento.

Penso que sua utilização se popularizou nos Estados Unidos da América pelo fato de ser uma sociedade que sempre está à procura de meios objetivos e científicos para demonstrar as suas teses.

Nesse caso, me parece que se apressaram….

Em Resumo

Os testes de polígrafo, conhecidos também como detectores de mentiras, suscitam ceticismo por várias razões. Em primeiro lugar, a equifinalidade, que destaca que diferentes fatores podem levar ao mesmo resultado, questiona a confiabilidade do polígrafo.

Além disso, sua base científica é controversa, com divergências entre estudos que sugerem alta precisão e críticos que apontam taxas de acurácia duvidosas, variando de 50 a 70%. A natureza psicológica do polígrafo é intrínseca, agindo como um dissuasor que pode influenciar os resultados, especialmente quando a crença na capacidade da máquina de “extrair” a verdade está presente.

Adicionalmente, é possível enganar o polígrafo por meio de alterações nas respostas fisiológicas, como induzir dor ou imaginar eventos traumáticos. Mesmo aqueles que falam a verdade podem falhar no teste ao tentar controlar as respostas do corpo. O uso de medicamentos também pode comprometer a precisão do polígrafo.

Diante desses desafios, é crucial adotar uma abordagem cautelosa em relação aos resultados desses testes, reconhecendo as limitações e considerando alternativas mais confiáveis para avaliar a veracidade.

Verdade Digital

O avanço tecnológico na automação da detecção de mentiras representa uma revolução significativa no campo da segurança, justiça e psicologia forense. Enquanto os métodos tradicionais, como o polígrafo, enfrentam críticas pela sua subjetividade e limitações, as novas abordagens baseadas em tecnologia prometem uma análise mais objetiva e eficaz.

Uma das inovações notáveis é o uso de inteligência artificial (IA) e aprendizado de máquina para aprimorar a precisão na detecção de indicadores de engano. Algoritmos sofisticados analisam padrões de linguagem, expressões faciais, microexpressões e até mesmo respostas fisiológicas com uma profundidade e velocidade que ultrapassam as capacidades humanas. Esses sistemas são treinados com grandes conjuntos de dados, permitindo-lhes reconhecer nuances sutis que podem escapar a observadores humanos.

A análise de linguagem é uma área-chave de inovação. Ferramentas de processamento de linguagem natural são capazes de examinar a escolha de palavras, o tom de voz e até mesmo a estrutura gramatical para identificar possíveis sinais de engano. Além disso, algoritmos de reconhecimento de emoções buscam padrões emocionais que podem indicar ansiedade, estresse ou desconforto associado à mentira.

A tecnologia também avança na interpretação de expressões faciais. Softwares de análise de expressões faciais usam câmeras para capturar microexpressões imperceptíveis a olho nu, fornecendo insights valiosos sobre as emoções genuínas de uma pessoa. Essa abordagem é especialmente útil em ambientes onde a detecção imediata de engano é crucial, como interrogatórios policiais.

Além disso, sistemas de monitoramento fisiológico integrados a dispositivos wearables ou sensores corporais estão sendo explorados. A análise de sinais como frequência cardíaca, temperatura da pele e atividade cerebral pode oferecer uma camada adicional de dados para a detecção de mentiras, proporcionando uma abordagem mais holística e abrangente.

Contudo, esses avanços não estão isentos de desafios éticos e preocupações relacionadas à privacidade. A coleta massiva de dados pessoais e o potencial para discriminação injusta levantam questões sobre o uso responsável dessas tecnologias. A transparência na implementação, regulamentação adequada e considerações éticas são essenciais para mitigar tais preocupações.

Então, os avanços tecnológicos na automação da detecção de mentiras prometem transformar radicalmente a maneira como abordamos a busca pela verdade. Embora essas inovações ofereçam vantagens notáveis em termos de eficiência e objetividade, é crucial equilibrar esses benefícios com a devida consideração ética e legal para garantir que a aplicação dessas tecnologias ocorra de maneira justa e responsável.

O que é mentira?

A mentira, como um fenômeno complexo, transcende a simples falta de veracidade. É uma ação complexa, envolvendo:

    • a alteração, inclusão ou omissão de informações relevantes.

Primeiramente, a mentira não se limita à fabricação de dados falsos; ela se manifesta na manipulação da verdade, seja por meio de distorções sutis ou silêncios estratégicos.

Contudo, o primeiro critério não é suficiente para caracterizar uma mentira. O segundo aspecto fundamental é:

    • a consciência da falsidade.

A mentira é uma ação deliberada, exigindo conhecimento e intenção de enganar. Quando a falta de consciência está presente, como em casos de confusão mental ou desordens cognitivas, a distinção entre verdade e mentira se desfaz, evidenciando uma complexidade ética e psicológica.

O terceiro critério:

    • o propósito, lança luz sobre a motivação por trás da mentira.

Cada ato de falsidade possui uma finalidade subjacente, seja para evitar consequências negativas, proteger sentimentos ou obter vantagem pessoal. A ausência de um propósito discernível pode indicar não uma intenção enganosa, mas sim uma manifestação de desordens mentais, como na esquizofrenia, em que a fronteira entre realidade e fantasia se torna nebulosa.

A falha nos critérios de consciência e propósito destaca a importância de considerar a saúde mental ao interpretar comportamentos enganosos. A confusão entre a verdade e a mentira pode ser um sintoma de condições psiquiátricas, onde a percepção distorcida da realidade é predominante. Diagnosticar erroneamente esses casos como mentiras simples pode perpetuar estigmas e impedir a obtenção do suporte médico adequado.

Assim sendo, a mentira transcende a distorção da verdade; é uma construção complexa que requer consciência e propósito.

Reconhecer a falta desses elementos é crucial ao avaliar comportamentos enganosos, especialmente quando relacionados à saúde mental.

Ao compreender a natureza multifacetada da mentira, podemos abordar essas questões com empatia, promovendo uma visão mais abrangente e cuidadosa das nuances da comunicação humana.

Para conhecer mais sobre os polígrafos e sobre as técnicas de detecção de mentiras veja:

 Drogas e o teatro da mentira.

A mentira pelas impressões cerebrais

O que há de mais recente na detecção da mentira?

Quais são as técnicas para a detecção de mentiras?

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Referências

[1] Widacki, J. (2018). James Q. Murdoch: How to Pass a Polygraph, San Bernardino 2018, 23 pp. European Polygraph, 12(1 (43)), 35-36.

[2] Faigman, D. L., Fienberg, S. E., & Stern, P. C. (2003). The limits of the polygraph. Issues in Science and Technology, 20(1), 40-46.

[3] Cook, L. G., & Mitschow, L. C. (2019). Beyond the polygraph: deception detection and the autonomic nervous system. Federal Practitioner36(7), 316.

[4] Honts, C. R., Thurber, S., & Handler, M. (2021). A comprehensive meta‐analysis of the comparison question polygraph test. Applied Cognitive Psychology, 35(2), 411-427.

[5] Ben‐Shakhar, G., & Iacono, W. (2021). Fallacies in the estimation of the validity of the Comparison Question Polygraph Test: A reply to Ginton (2020). Journal of Investigative Psychology and Offender Profiling, 18(3), 201-207.

Matéria sobre o polígrafo e sua confiabilidade. [em inglês]

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