Incrementar o desempenho humano: benção ou maldição?

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Desde sempre, fomos fascinados por algo que possa incrementar o desempenho humano. Um tipo de incremento que se possa fazer no desempenho normal de qualquer um de nós.

Desde o final do Sec. XIX que os precursores da Antropologia Cultural vêm tratando desse tema [de forma introdutória, é claro].

Um desses visionários foi Alfred Kroeber [ 1876-1960] e trataremos sobre um dos seus mais curiosos conceitos a seguir. Alfred Kroeber foi um antropólogo cultural estadunidense, que fundou o Departamento de Antropologia na Universidade da Califórnia, Berkeley.

Ele também fundou o Laboratório de Antropologia do Museu de História Natural da Califórnia. Kroeber foi um dos precurssores da Antropologia moderna e seu trabalho foi influente na etnografia, antropologia social e cultural. Publicou mais de 30 livros e centenas de estudos culturais.

Kroeber também foi pioneiro na Antropologia aplicada e foi um dos primeiros antropólogos a se envolver em estudos de campo. Seu conceito de superorgânico é um exemplo da ideia de incrementar o desempenho humano pela cultura.

O superorgânico – Alfred Kroeber – incrementar o desempenho humano pela cultura

O conceito de “superorgânico” de Alfred Kroeber refere-se à ideia de que os fenômenos culturais não são simplesmente o resultado do comportamento individual, mas sim o fruto de forças sociais e culturais mais amplas complexas. Este conceito sugere que a cultura não é apenas o produto de atores individuais, mas sim um fenômeno coletivo e emergente que é moldado por forças sociais e históricas.

Kroeber argumentou que a cultura é um fenômeno “superorgânico” que é maior que a soma de suas partes e que seu desenvolvimento é determinado por forças sociais e históricas. É também uma forma de se referir às ferramentas simbólicas e semióticas da cultura que nos capacitam a superarmos a adaptação meramente orgânica aos desafios do ambiente.

O ser humano sempre tentou incrementar o desempenho pelo desenvolvimento e uso de ferramentas. Não é necessário criar guelras para respirar na água, usa-se um cilindro de mergulho. Muito menos precisa-se de penas e assas para voar, constrói-se um avião. Então, desde sempre, as ferramentas semióticas nos tornaram aptos para superar os desafios da evolução e incrementar o desempenho.

In the mind’d eye: enhancing human performance – incrementar o desempenho pela tecnologia

incrementar-o-desempenho-humano-bencao-ou-maldicaoA tecnologia é outro produto cultural dos seres humanos. Entretanto, em meio ao desejo irrefreado de melhorar o desempenho, muitas propostas enganosas surgem.

Foi com o propósito de “separar” o joio do trigo que a publicação, elaborada pelo National Research Council – estadunidense – reuniu uma grande quantidade de especialistas para avaliarem as técnicas supostamente revolucionárias existentes à época.

Lembro que vi essa publicação no final dos anos 90 e, essa semana, tive a oportunidade de ler novamente.

A obra “In the Mind’s Eye: Enhancing Human Performance” descreve, em uma visão abrangente, o potencial para aumentar o desempenho humano por meio da intervenção tecnológica.

Ela explora as implicações éticas, legais e sociais dessas intervenções, bem como seu potencial para, efetivamente, melhorar o desempenho humano em áreas como a prática médica, os esportes e as aplicações militares.

A obra examina o estado da pesquisa, à época, em aumento cognitivo e o potencial de avanços tecnológicos. Levanta as implicações desses avanços para os indivíduos, para a sociedade e para a economia. Fomenta o debate sobre as implicações das técnicas de aumento cognitivo e como essas tecnologias podem ser regulamentadas. Também analisam o potencial do uso da tecnologia para melhorar os resultados educacionais e as possíveis implicações dessas intervenções nessa área.

Os autores também abordam o potencial do uso da tecnologia para melhorar o desempenho humano em outros contextos, como, por exemplo, nos negócios e na indústria. Analisam o seu potencial para melhorar a eficiência da tomada de decisões e os possíveis desdobramentos do uso dessas tecnologias para vigilância e coleta de dados.

Quase 30 anos depois, vemos alguns dos alertas, feitos por esses cientistas, se tornarem realidade. É o que tratamos a seguir.

Um exemplo – 10 aspectos sobre o risco sobre “melhorar” o desempenho na detecção de mentiras

Um dos grandes interesses científicos na área de incrementar o desempenho humano, no final dos anos 90, era a descoberta [e até mesmo automatização] de métodos para detectar mentiras. Há tempos, diversos pesquisadores na área das ciências sociais (e.g. Hall, 2009) e mais recentemente (e.g. Denault et al., 2020; Denault & Jupe, 2018; Nahari et al., 2019)    vêm levantando esses problemas em seus trabalhos.

Vejamos, então, quais são os 10 principais problemas que, atualmente, verificamos na utilização de métodos automatizados para detectar um mentiroso:

1. Autonomia: Métodos de detecção de mentiras podem ser usados para minar a autonomia de um indivíduo, forçando-o a se submeter a um interrogatório involuntário. Por exemplo, um empregador pode exigir que um candidato a emprego faça um teste de polígrafo como condição de emprego.

2. Privacidade: Os métodos de detecção de mentiras podem violar o direito individual à privacidade, como quando um detector de mentiras é usado para monitorar as atividades de um funcionário no local de trabalho.

3. Práticas discriminatórias: Métodos de detecção de mentiras podem ser usados para discriminar certos grupos de pessoas. Por exemplo, alguns empregadores podem usar testes de detector de mentiras para selecionar candidatos de determinados grupos étnicos ou raciais.

4. Imprecisão: Os métodos de detecção de mentiras podem produzir falsos positivos ou falsos negativos, levando a conclusões incorretas. Por exemplo, um teste de detector de mentiras pode indicar que uma pessoa inocente está mentindo, embora não esteja.

5. Falta de confiabilidade: Os métodos de detecção de mentiras podem não ser confiáveis, pois podem ser facilmente enganados ou manipulados pela pessoa que está sendo testada.

6. Desigualdade: Os métodos de detecção de mentiras podem ser usados para dar a um indivíduo uma vantagem ou desvantagem injusta. Por exemplo, um empregador pode usar um detector de mentiras para determinar quem é mais qualificado para um trabalho, dando a uma pessoa uma vantagem sobre a outra.

7. Viés: Os métodos de detecção de mentiras podem ser tendenciosos contra certos grupos de pessoas, como mulheres ou minorias.

8. Exploração e abuso: Métodos de detecção de mentiras podem ser usados para explorar indivíduos vulneráveis, como crianças ou idosos.

9. Pressão: Os métodos de detecção de mentiras podem ser usados para pressionar os indivíduos a fornecer falsos testemunhos ou confissões.

10. Capacidade limitada: Os métodos de detecção de mentiras podem ser limitados em sua capacidade de detectar a verdade ou o engano, levando a falsos positivos ou falsos negativos.

Veja nossos vídeos sobre a crise no estudo da comunicação não-verbal.

Palavras finais – Incrementar o desempenho humano: benção ou maldição?

De forma geral, não há um só problema genérico nas atividades de tentativa de melhoria do desempenho humano em desenvolver uma tarefa. Talvez nem haja qualquer questão em uma boa parte dos casos.

Entretanto, o que observo é a apropriação equivocada que é realizada na prática, diante da criação de uma expectativa que determinado método ou tecnologia é “milagrosa”. Esse fenômeno, se for misturado com a preguiça humana, pode se tornar muito prejudicial.

Menciono o exemplo dos métodos automatizados de detecção de atividades suspeitas em aeroportos, como forma de incrementar o desempenho, que vêm apresentando diversas falhas (e.g. Kerley & Cook, 2017;  Inserra & Casterline, 2017). Como tudo, bênção ou maldição dependerá de como usamos a cultura ou a tecnologia….

Então, é hora para a realização de uma séria avaliação, antes que as “inteligências artificiais” piorem ainda mais o cenário por meio da exacerbação dos problemas anteriormente mencionados.

Boa leitura

Sergio Senna

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Referências

Denault, V., Plusquellec, P., Jupe, L. M., St-Yves, M., Dunbar, N. E., Hartwig, M., Sporer, S. L., Rioux-Turcotte, J., Jarry, J., Walsh, D., Otgaar, H., Viziteu, A., Talwar, V., Keatley, D. A., Blandón-Gitlin, I., Townson, C., Deslauriers-Varin, N., Lilienfeld, S. O., Patterson, M. L., . . . van Koppen, P. J. (2020). The analysis of nonverbal communication: The dangers of pseudoscience in security and justice contexts. Anuario de Psicología Jurídica, 30(1), 1–12.

Denault, V., & Jupe, L. M. (2018). Justice at risk! An evaluation of a pseudoscientific analysis of a witness’ nonverbal behavior in the courtroom. The Journal of Forensic Psychiatry & Psychology, 29(2), 221-242.

Hall, J. A. (2009). 21 Nonverbal Behavior in Social Psychology Research: The Good, the Bad, and the Ugly. Then a miracle occurs: Focusing on behavior in social psychological theory and research, 412-437.

Inserra, D., & Casterline, C. (2017). Here’s How Bad the TSA is Failing at Airport Security. It’s Time for Privatization. The Heritage Foundation.

Kerley, D., & Cook, J. (2017). TSA fails most tests in latest undercover operation at US airports. ABC News.

Kroeber, Alfred. L. “O superorgânico” [1917]. Em A natureza da Cultura. Lisboa: Edições
70. Pp. 39-79, 1952.

Nahari, G., Ashkenazi, T., Fisher, R. P., Granhag, P. A., Hershkowitz, I., Masip, J., … & Vrij, A. (2019). ‘Language of lies’: Urgent issues and prospects in verbal lie detection research. Legal and Criminological Psychology, 24(1), 1-23.

Vrij, A., Fisher, R. P., & Leal, S. (2022). How researchers can make verbal lie detection more attractive for practitioners. Psychiatry, Psychology and Law, 1-14.

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